Um ditado popular diz que pelo dedo se conhece o gigante. Acho que não
há, mas deveria haver, um ditado desse tipo com conotações negativas
análogas, algo como "pela orelha se conhece o burro", assim como há o
prêmio Ig-Nóbil, o avesso do Nobel, para "premiar" pesquisas
esquisitas, e o Prêmio Santa Clara, que os colunistas de cultura
atribuem aos piores programas e apresentadores da TV brasileira (as
explicações dos jurados, às vezes, merecem o prêmio que concedem...).
Mas não há um ditado com alcance negativo genérico, talvez porque seja
mais difícil dar conta de todos os defeitos em que a humanidade se
especializou do que de suas virtudes. Não há, mas devia haver. Se
houvesse, e se eu pudesse opinar, ele iria para o deputado Aldo Rebelo.
Ele tem tudo, aliás, para ser hors concours. É que ele não acerta uma quando se trata de língua. Explico.
No dia 02/02/2008, o colunista esportivo José Geraldo Couto escreveu na Folha de S.Paulo
sobre a enorme quantidade de jogadores de futebol que tem nome
estrangeiro, especialmente de origem anglo-americana - apesar de um ou
outro Jean ou Pierre ou Juan. A certa altura, disse que podia parecer
que estava engrossando o coro dos que, como o deputado Aldo Rebelo,
querem defender a "pureza" da língua pátria. Mas que não era nada disso.
Alguns dias depois, o jornal publicou carta do deputado, que se queixava
de ter entrado na coluna de Couto como Pilatos no Credo. É que seu
projeto não diz nada sobre nomes estrangeiros, até porque, acrescenta,
já são proibidos pelo Formulário Ortográfico (!).
José Geraldo dava especial destaque ao que chamou de processo de
canibalização ao qual os nomes estrangeiros têm sido submetidos. Alain vira Allan, David vira Deivid, Michael vira Maicon, Holliwood vira Oliúde. Sem contar que a vida às vezes frustra o imaginário dos pais, já que, por exemplo, Ebert William Amâncio virou simplesmente Betão e Wanderson de Paula Sabino é conhecido como Somália.
Pois foi sobre isso que o deputado resolveu opinar. Escreveu que aquilo
que o colunista chama de canibalização "nada mais é do que o
aportuguesamento a que deveria ser submetida toda palavra estrangeira
que entra em nosso idioma, com exceção dos sobrenomes. É por isso que
chamamos o herói suíço de Guilherme, e não de Wilhelm Tell. Coisa nossa? Os espanhóis dizem Guillermo, os franceses, Guillaume, os italianos, Guglielmo".
A declaração tem dois problemas. Um é leve, poderia até ser esquecido,
mas um pouco de precisão faz bem. Espanhóis, franceses e italianos não dizem Wilhelm das formas como o deputado acha que dizem: eles escrevem assim o nome equivalente na sua língua. As pronúncias são um pouco diferentes, e até variáveis. Guillermo, por exemplo, pode ser pronunciado pelo menos "guijermo" (pelos portenhos) e "guilhermo" (na pronúncia castelhana "padrão").
Mas o diabo é que Rebelo mencionou Maicon como exemplo.
Não dá, deputado. Pelo seu critério, o "aportuguesamento" de Michael deveria ser o velho e bom Miguel: se Wilhelm equivale a Guilherme, Michael equivale a Miguel. Elementar.
Para a grafia Maicon, o termo "canibalização" é bem mais adequado (lembremos que Patrícia Mello chamou Máiquel a seu herói em O matador). Se alguém decidisse aportuguesar Wilhelm seguindo os critérios adotados para "aportuguesar" Michael por Maicon, Giovanni por Geovane, Charles por Tiarles e Jefferson por Djiefferson etc., a solução não seria Guilherme, como o deputado afirmou, mas Wilirrelme ou Wilirreume ou Wilirrelmi ou Wilerreu(l)me(i) (etc., que a criatividade de pais e tabeliães é quase infinita).
Possivelmente, algum deles preferiria que o nome incluísse um "y", quem sabe até dois, e "ll" duplos, e acabaríamos tendo Wyllyrrelme(i) . Se o sobrenome fosse incluído no pacote, a escolha seria Tel ou Teo ou Teu, quem sabe mesmo Thew - e talvez com acento. Não seria surpreendente que o nome fosse dividido em dois, e que sua recriação desse em Wylly Relme ou Villi Helme - ou em uma das outras variantes possíveis para "ii" e "ll"...
Enfim, o menino precisaria de muita sorte ou o tabelião de um bom almanaque, para que a opção fosse o óbvio Tell.
Não, não vou aproveitar o espaço para reclamar dos que escrevem meu sobrenome com "e", Possente. Apenas lhes rogo uma praga...
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Nomes próprios são um capítulo à parte, claro, mas Rally Dacar na América do Sul não é mais ou menos como Rock in Rio em Lisboa?
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Palavras estrangeiras costumam enganar jornalistas e outros -istas. Os
esportivos costumam referir-se a um torcedor italiano como sendo um tifosi, sem sacar que esse "i" é marca de plural. O mesmo fazem os que cobrem fofocas e qualificam um fotógrafo de paparazzi. Ora, um fotógrafo é um paparazzo, como um torcedor é um tifoso.
No caderno de informática do Correio Popular de 11/02/2007, a manchete é "descubra se você é um heavy users" (sic!). Depois falam do Lula...
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