quarta-feira, 13 de junho de 2012

CRÔNICA - Depois do jantar - Carlos Drummond de Andrade


            Também, que idéia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
            O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
            — Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
            — Não fumo, respondeu o outro.
            Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:
            — 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
            — Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
            — Como?
            — Já disse. Vai passando o relógio.
            — Mas ...
            — Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
            — Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por favor, me ajude.
            O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
            — Agora posso continuar?
            — Continuar o quê?
            — O passeio. Eu estava passeando, não viu?
            — Vi, sim. Espera um pouco.
            — Esperar o quê?
            — Passa a carteira.
            — Mas...
            — Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
            — Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina.
Ainda não acabei de pagar...
            — E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
            — Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
            — Diga.
            — Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
            — Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
            — Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
            — É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado,
manja?
            — Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
            — Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
            — Não precisa, não precisa.
            — Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior cara-de-pau.
            — Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
            — Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
            — Claro.
            — Você, o assaltado. Certo?
            — Confere.
            — Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
            — Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
            — Tá bom, não se discute.
            — Vamos, procure nos... nos escaninhos.
            — Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.
            — Deixe ao menos tirar os documentos?
            — Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as regras.
              Nem uma de quinhentos? Uma só.
              Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que mora perto.
              Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
            — Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez. Mas antes, uma lembrancinha.
            Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé.
(Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.)

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