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domingo, 22 de maio de 2011

COMUNICOU... II

Um livro para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), distribuído a 4.236 escolas e a quase meio milhão de alunos pelo Ministério da Educação (MEC), tolera erros de concordância na fala.

A obra, que considera correta as expressões "nós pega o peixe" e "os livro" e prega que o aluno pode esquecer o "s" , deixou os zelosos pela língua culta de cabelo em pé.

Uma das autoras do livro "Por uma vida melhor", Heloísa Ramos, explicou que a intenção foi mostrar que o conceito de certo e errado deve ser substituído por uso adequado e inadequado da língua.

Uma enxurrada de reações à obra tomou conta de jornais e da internet na semana. O presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marcos Vilaça, criticou a adoção do livro pelo MEC e afirmou que os ensinamentos de "Por uma vida melhor" são como "ensinar tabuada errada".

Já a Associação Brasileira de Linguística informou que os críticos se precipitaram ao atacar os ensinamentos do livro. "Não tiveram sequer o cuidado de analisá-lo mais atentamente", disse a entidade, em nota.

Neiva Maria Jung

A professora Neiva Maria Jung, doutora em Letras e professora de Língua Portuguesa da Universidade Estadual de Maringá (UEM), considera que ao tratar do assunto no livro, o estudante – que fala justamente dessa forma –teria mais facilidade em assimilar a norma culta. "Vai levá-lo a discernir em quais ambientes ele pode falar daquela forma".

"O que os autores (do livro) se propuseram a fazer não foi afirmar ao aluno que ele pode continuar falando assim. Em vez de ignorar, o que eles estão fazendo é trazer o assunto para a sala de aula’’.

"A sociedade ainda se vale da linguagem como valor de exclusão social e acha normal que todos tenham de falar e escrever de acordo com a norma culta. Esse discurso é preconceituoso’’.


O Diário - Qual a opinião da senhora sobre o livro que tolera erros de concordância na fala?

Neiva Maria Jung - A postura atual da linguística pede que a escola leve o aluno a compreender o que constitui a linguagem dele na fala. Esse seria o caminho mais fácil para ele aprender a escrita. Da forma como está acontecendo hoje, simplesmente se impõe a norma culta escrita e ainda se deixa claro para o aluno que ele deve falar como ele escreve. E essa é uma tarefa muito árdua e que não acontece. Nem mesmo os que mais zelam pela língua, os mais puristas, não conseguem falar como escrevem. Eles falam uma norma culta, mas que é diferente da escrita. Levar o aluno a entender o que constitui a sua fala parece mais fácil para que ele compreenda o que constitui a escrita.

Qual é, afinal de contas, a diferença entre a fala e a escrita? Elas não são a mesma coisa. A oralidade também deve ser trabalhada nas escolas, mas principalmente a escrita, que é a responsável pela mobilidade social. Esses grupos socioeconomicamente desfavorecidos têm fala bastante diferente e com muitas variações linguísticas porque não têm acesso à escolaridade como os grupos mais privilegiados. Na verdade, o preconceito que gerou essa polêmica é social e como agora existe uma política de combate a todo tipo de preconceito, precisamos começar a mexer nesse assunto, que é muito velado.


O Diário - A escola pode aceitar outras variantes da língua, diferentes das regras gramaticais?

Neiva Maria Jung - Não é que a escola vai aceitar uma carta ou um ofício escrito com variação linguística. Até porque são gêneros que exigem a norma culta. A escola vai corrigir, pedir que o aluno refaça, vai trabalhar para que ele redija um ofício e um requerimento dentro dos padrões da língua culta.

O Diário - Em uma prova não será aceito, por exemplo?

Neiva Maria Jung - De jeito algum, porque a prova pede a norma culta. Ela vai aceitar em um bilhete para o colega, por exemplo. O próprio aluno já sabe o que pode usar no bilhete e em uma carta para a diretora, por exemplo. Ele tem a noção de adequação da linguagem. O que acontece é que os alunos de classes sociais desfavorecidas não têm muito contato com a escrita antes da escola. Eles não têm quem faça essa mediação e mostre o que é da escrita e o que é da fala.

O Diário - Mas está certo dizer "nós pega o peixe"?

Neiva Maria Jung - Certo e errado é relativo. Há certos grupos sociais no Brasil que falam ‘nós pega o peixe’. Pelo menos no capítulo ‘Escrever é diferente de falar’ (do livro distribuído pelo MEC a alunos da EJA), o que os autores se propuseram a fazer não foi afirmar ao aluno que ele pode continuar falando assim. A escola faz de conta que isso (a variante) não existe. Em vez de ignorar, o que eles (autores do livro) estão fazendo é trazer o assunto para sala de aula.

E mais: precisamos explicar linguisticamente porque a pessoa fala ‘nós pega o peixe’. Por que só há marca de plural no primeiro elemento? Na verdade, essa marca é redundante. O português culto pede que se repita, mas a sociedade economiza tempo e essa economia também acaba indo para a linguagem. O livro leva o aluno a refletir e é um caminho para que ele entenda porque o ‘nós’ passou para ‘nóis’ e ‘peixe’ não é mais ‘peixe’, e sim ‘pexe’.

O que aconteceu linguisticamente? O professor estaria levando o aluno a compreender a gramática da língua que ele fala e da que ele vai aprender para escrever e para falar em situações formais. Ressalto que o preconceito não é resultado da questão linguística, ele é social.

O Diário - Ao citar esses exemplos no livro, ficaria mais fácil para o estudante assimilar a norma culta?

Neiva Maria Jung - Parece que sim. O que está acontecendo é que a escola simplesmente ignora a forma de falar do aluno e finge que ele não fala diferente. O estudante chega à escola e percebe que a forma que ele fala não está correta. Isso não é claramente dito, está nas entrelinhas. Então, ele começa a silenciar. Colocar o assunto em discussão talvez seja uma forma de trazer o conhecimento do aluno para a sala de aula. O estudante tem de se sentir parte da construção do conhecimento. Como ele vai participar se o que ele tem e o que constitui sua identidade a escola simplesmente despreza? Ele precisa sentir na escola que o ele sabe tem valor e não simplesmente achar que tudo o que aprendeu até então não tem valor.

Essa forma talvez faça com que ele reconheça que há diferentes gêneros orais e que ele precisa se apropriar deles para conseguir mobilidade social. Caso contrário, ele não vai conseguir se inserir em determinados lugares da sociedade, não vai conseguir passar em concurso público e no vestibular.

O Diário - A senhora acha que houve muita polêmica sobre o assunto?

Neiva Maria Jung - Acho e fiquei até estarrecida. Eu achava que nós, como sociedade, já tínhamos avançado um pouco mais. Até li um artigo (sobre o tema) que fazia relação com a Semana de Arte Moderna de 1922. E nós mudamos tanto desde então, mas de repente um fato que já deveria estar acontecendo nas escolas gera toda essa polemica.

Isso mostra que os linguistas tem muito a fazer. A sociedade ainda se vale da linguagem como um valor de exclusão social. A sociedade acha normal que a gente tenha uma norma culta e que todos tenham de falar e escrever de acordo com ela. Esse discurso é preconceituoso porque o que se faz é deixar à margem da sociedade toda a população que não fala e escreve na norma culta. A escola precisa ensinar a outra variedade para garantir a mobilidade social do estudante.

O Diário - Há riscos para os alunos pelo fato de a escola tolerar erros de concordância?

Neiva Maria Jung - Se trouxermos isso para a sala de aula estaremos incentivando os alunos a falar errado? Não, ao contrário. Isso vai auxiliar e levar o aluno a perceber o que é a norma culta e o que é a variedade que ele fala. Vai levá-lo a discernir em quais locais pode falar de qual jeito.

O Diário - Antes, o acesso à escola era restrito, hoje é mais democrático.

Antes, quem tinha acesso à escola eram os grupos elitizados. Os próprios professores eram elitizados. Depois que a escola abriu (os portões) para todos, outros grupos sociais passaram a frequentá-la. A maioria dos professores de hoje são desses grupos sociais. Com a entrada deles, veio a variação linguística e a escola não quer dar conta dela, é mais fácil ignorar.

O Diário - Quem fala errado consegue escrever certo?

Neiva Maria Jung - Sim, se você tem contato com a escrita e se passou por uma escola que lhe ensinou. Você percebe que uma coisa é do gênero escrito e outra do falado. Tanto é que em muitas situações esquecemos um ‘s’ ao falar, mas dificilmente escreveríamos sem essa concordância.

O Diário - Por que abordaram o tema em um livro didático distribuído na Educação de Jovens e Adultos?

Neiva Maria Jung - Porque são grupos que não tiveram acesso à escola e essas variantes são muito presentes (na vida deles).

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